E o Alto de S. Bento aqui tão perto...

 

Memorando

Prospeções arqueológicas na área de S. Bento de Castris

 

1.      Onde, quanto e quando?

1.1. No Alto de S. Bento existem vestígios inequívocos da presença de um extenso povoado calcolítico (III milénio a. C.), de altura, com muralhas de pedra e, também, aparentemente, de duas áreas de ocupação, uma anterior e outra, posterior.

Para melhor caracterizar o sítio, a montante de sondagens/escavações que se espera venham a ser efetuadas, fiz, recentemente, uma revisão minuciosa dos dados de superfície, através de um programa intensivo de prospecções arqueológicas.

Apesar da escassa prospetabilidade, que resulta quer das amplas áreas destruídas por pedreiras antigas, quer do denso coberto vegetal que afeta a maior parte da área arqueológica, quer ainda da elevada quantidade, na parte central e Sul do cabeço, de materiais de épocas recentes, foi possível determinar “grosso modo” os limites do sítio, aproveitando sobretudo as trilhas que atravessam atualmente o Alto de S. Bento, em várias direções, e os aceiros abertos na parte pertencente ao Convento de S. Bento de Castris.

Dentro da cerca do Convento (perto de ¼ da área total), não parece haver graves perturbações dos níveis arqueológicos, sendo visíveis, em 3 pontos, na encosta exposta a Leste, indícios da presença de uma provável estrutura defensiva.

1.2. Vejamos a questão da atribuição cronológica: por um lado, a informação bibliográfica de que tenho conhecimento, apesar de o sítio ter sido referenciado, pelo menos, desde o sec. XIX, é muito escassa e pouco consistente.

Por exemplo, a presunção de uma ocupação da Idade do Ferro, assente num achado avulso (uma pintadeira, em bronze) e talvez no topónimo “castris”, não parece ter base substantiva. Nas intensas prospeções agora efetuadas, apenas um fragmento de bordo exvertido, junto a um dos moinhos, poderia ser atribuído a essa época.

Muito mais interessante, mas muito datado, destaca-se um texto, publicado num jornal eborense, em 1938, assinado por Tito Lívio Eborense, sobre o Alto de S. Bento e divulgado online por A. Carlos Silva e Mário Carvalho. Esse autor refere recolhas de materiais (“centenas de objetos pré-históricos”), talvez de superfície, cujo paradeiro desconheço. A referência às muralhas, apresentada de forma muito taxativa, carece de referência a evidências concretas; porém a menção à “escarpa que lhe servia de forte muralha” parece de reter.

Fig. 1 - Texto de Tito Lívio Eborense, publicado no jornal Notícias de Évora

Efetuei, há cerca de 20 anos, algumas prospeções no local, no âmbito dos trabalhos de campo para elaboração do PDM de Évora, em que o Alto de S. Bento foi, naturalmente incluído e cujos resultados, em termos de materiais recolhidos, foram sucintamente publicados na minha Tese de doutoramento sobre os Menires do Alentejo Central. As cerâmicas recolhidas implicavam, sem reservas, uma cronologia do Neolítico final/Calcolítico.

Fig. 2 - Materiais de superfície do Alto de S. Bento (Calado, 2004)

    O material agora observado confirma abundantemente esta fase de ocupação.
    Por outro lado, alguns dos materiais líticos (sobretudo as lamelas e os geométricos), sugerem uma presença humana no Mesolítico ou no Neolítico antigo/médio; na verdade, a associação, no lado Sul do cabeço, entre esses materiais líticos e cerâmicas lisas, sem bordos espessados, nem carenas, aponta, sobretudo para uma ocupação do local numa fase avançada do Neolítico médio regional, eventualmente já dentro do IV milénio a. C.…

 

Fig. 3 - Materiais de superfície do Alto de S. Bento

Resta acrescentar ainda um conjunto de materiais campaniformes, depositados no Museu de Arqueologia de Montemor-o-Novo, e identificados como provenientes de uma escavação de J. de Lemos, em S. Bento de Castris. Esta fase, não identificada através das prospecções que efetuei, é perfeitamente consentânea com o povoado calcolítico, eventualmente, em fase de decadência, como foi observado no Porto das Carretas ou, de modo menos óbvio, em situações como a do povoado de Leceia ou o de Miguens 3.

Tendo em conta os sítios acima mencionados, seria de esperar que estes materiais se relacionem com o núcleo localizado na base do cabeço, a SE do Alto de S. Bento, na Quinta do Chantre.

Fig. 4 - Materiais expostos no Museu de Arqueologia de Montemor-o-Novo.

2.      O Castro

Os dados disponíveis (nomeadamente, os materiais observados, sobretudo bordos espessados e almendrados, pesos de tear, pedra polida e percutores, assim como  a localização do sítio numa topografia vantajosa e o próprio topónimo “castris”) permitem assegurar a presença de um povoado fortificado do Calcolítico, iniciada eventualmente ainda em fase neolítica, como ocorre noutros casos conhecidos.

A invisibilidade, à superfície, das estruturas defensivas, relativamente normal nos sítios desta época, sobrevivendo apenas, habitualmente, as últimas fiadas de pedra ao nível do solo, deve ter sido agravada, no caso do Alto de São Bento, pelo uso do local como pedreira, presumivelmente desde a instalação, pelos romanos, da cidade de Évora.

Apesar disso, é altamente provável que tenham sobrevivido (sobretudo, na área atualmente incluída na cerca do São Bento de Castris) restos dessas estruturas de que, como referi, me parece ter agora encontrado algumas evidências.

Fora da cerca, quase toda a área foi profundamente afetada por construções de épocas históricas, por extração de pedra e, atualmente, pela erosão dos sedimentos, em particular ao longo da rede de trilhos que a percorre. Do lado ocidental, a muralha calcolítica é aparentemente extrapolável, tendo em conta os declives naturais proporcionados por uma linha de afloramentos.

Fig. 5 - Áreas com materiais de superfície no Alto de S. Bento

Dimensões mínimas das áreas ocupadas, extrapoláveis a partir da distribuição dos materiais de superfície e da topografia

Por outro lado, se existiu, como era frequente, uma fortificação central, é possível que resistam vestígios no ponto mais elevado do cabeço, onde se localiza um moinho e uma moradia, a Quinta do Giraldo.

Nessa área, é visível um talude murado que poderia ocultar restos dessa eventual estrutura e o terreno anexo parece pouco perturbado.

Fig. 6 - Localização da provável fortificação central

3.      O problema

O uso atual do sítio, para fins educativos e, sobretudo, de atividades de ar livre, promovidas pela CME, tem vindo a provocar um forte ravinamento e a consequente erosão dos níveis arqueológicos, fenómeno que é facilmente observável em vários pontos dos trilhos.

                                        

                                                                    Fig.7 -  Cartaz junto ao Alto de S. Bento

Essa afetação é particularmente severa na área que fica entre o caminho de acesso aos moinhos e a cerca do São Bento de Castris, usada intensivamente por ciclistas e/ou motociclistas.

Por outro lado, o projeto de musealização do sítio, como geomonumento (da autoria do Prof. Galopim de Carvalho), implicou a remoção dos sedimentos que restavam na área envolvente dos moinhos; tanto quanto sei, essa operação não teve qualquer acompanhamento arqueológico. Porém, permanecem, ainda, pequenas bolsas cuja erradicação futura, a ser implementada (como, segundo soube, em visita recente, o Professor Galopim sugeriu), deveria ser feita por arqueólogos.

 

4.      Que fazer?

A importância do “castro” do Alto de S. Bento, no âmbito do património arqueológico eborense, é indiscutível, por várias razões. Não se trata, obviamente, da “origem e fundação” da cidade, uma vez que, aquando da implantação da cidade, em época romana imperial, o Alto de S. Bento seria uma ruína com, no mínimo, 2000 anos de abandono. 

É muito plausível que a atribuição do topónimo "castris" tenha sido feita em época romana, o que implica que as muralhas, mesmo arrasadas, seriam ainda bem visíveis.

Por outro lado, convém notar que, se as áreas delimitada a partir dos materiais de superfície,  se vierem a confirmar, estaremos perante um dos maiores povoados calcolíticos, com muralhas de pedra, em Portugal.

Pessoalmente, creio que a dimensão do povoado, a todos os títulos excepcional, se relaciona com os mesmos fatores geográficos que determinaram a maior concentração ibérica de menires a Oeste da cidade e os mesmos que tornaram Évora a capital histórica do Alentejo Central e que, a meu ver, se relacionam diretamente com a rede de caminhos naturais.

Acho, por isso, muito importante que, com alguma urgência, se tomem medidas para suster a afetação dos níveis arqueológicos sobreviventes, e, logo que possível, se efetuem, finalmente, sondagens de diagnóstico, eventualmente associadas a sondagens geofísicas, por forma a retirar do limbo em que se encontra um sítio excecional, em termos regionais, e único, em termos da memória eborense.

 Sinal desse estranho esquecimento, por parte da CME, é a forma como, nos painéis afixados no local, mas também na informação divulgada por outros meios, se divulga o Núcleo Museológico do Alto de S. Bento: destaca-se a geologia, a florística, a etnografia, a paisagem, mas a palavra arqueologia pura e simplesmente não consta…